domingo, 7 de dezembro de 2014

Banda Sonora Original,2

My Girl, Madness


Houve este tempo, leitores. Houve este tempo que apesar das vidas não passou. E é só por encaixar de forma tão perfeita no agora que dele vos falo. Indulgência vos peço.

O problema que me assolou desde cedo, como uma doença, foi o apego às palavras. Tudo isto seria pacífico e até ideal se pelo meio não tivesse que lidar com essa maçada que os eufemistas chamam de 'adolescência'.Uma chatice que num misto de revolta e resignação vejo reflectida nos meus filhos e que infelizmente não posso impedir.

Digamos, para evitar especulações, que tive de passar por isso. E, Deus, como fui chato! Apesar de um princípio prometedor - criancinha-metida-em-casa-por-prazer-a-devorar-livros -, a festa das hormonas (hoje já institucionalizadas sob o nome de código 'Erasmus' - convidou-me para algo que não estava preparado. No meu caso: raparigas.

Entendam: uma coisa é um tipo fantasiar sobre a Ana dos Cinco na privacidade do lar. Outra é ver-se confrontado com o que sonhou feito carne, osso e desdém. Sim, as raparigas.

Seria fácil para quem fosse um sujeito dotado desse sobrevalorizado atributo masculino que é a beleza. (nota-se muito o rancor?). Mas para quem como eu não era (e continua a não ser), todos os trunfos eram válidos. Graças a uma extraodinária educação e a uma atenção às canções desde criança, gerou-se uma imediata prioridade ao que se diz numa cantiga sobre o seu todo. Com o tempo, tudo se foi diluindo. Mas para um miúdo de 15 anos foi uma provação inútil e inapropriada falar de palavras antes do tempo.

O drama com My Girl, dos Madness, foi inevitável. A chegada do movimento 2-Tone, nos finais do anos 70, foi uma festa. Libertando-se dos ritmos enfadonhos do reggae e de um culto patético a um ditador - Haile Selassié, da Etiópia - os rapazes do norte de Londres faziam a sua vida integrando negros e brancos numa música dançável e anfetamínica que contagiava todos os que a ouviam e, no limite, geravam pancadaria entre as tribos urbanas (cf. Staring At Rude Boys, The Ruts).

Nesta maré, os Madness eram os meus preferidos. Os Specials concentravam a sua arte numa função política, de mensagem ( e é deles um dos  mais belos hinos de combate aos anos Thatcher: Ghost Town). Mas os Madness focavam-se nos dramas pequenos, tão pequenos que por isso mesmo eram impossíveis de serem ignorados. O que cantavam - para além do gozo e da liberdade de poderem fazer o que lhes dava na gana - era o que acontecia. Era verdade. De resto, quanto mais absurdo, melhor.

É o que acontece com a extraodinária biópsia das relações quotidianas que é My Girl. Escrita e composta por Michael Barson, era um hino cockney a todos os rapazes que só querem estar sossegados, verem televisão sozinhos e não têm paciência para permanecer mais de um minuto ao telefone. Dito assim parece fácil,não é leitor mais experiente? Mas a minha provação foi outra: interromper raparigas de quem eu gostava com longas explicações sobre a letra:« E olha agora», dizia no meio da dança, « agora que ele diz 'por que é que ela não vê que só queria ver televisão em paz», etc. O número de namoradas que perdi foi incontável. E agora reconheço, tranquilo: ainda bem que não fui eu que me aturei.

Fica e ficará uma magnífica canção, crónica afectiva de todos os que amam. E isto eu ganhei.