O ano de Lisboa
Um tipo às vezes perde-se. E então se tem como profilático
involuntário o ordenar palavras, pior ainda. Mais fácil para quem se liberta ou
está habituado ao peso dos dias, por vontade, profissão ou ambos. Mas para os
amadores, os cronistas diletantes – leia-se “os que não são pagos” – o dilema
agiganta-se: tanta coisa que acontece ( que os não-especialistas despacham com
a palavra ‘ vida’) e apesar de sabermos que não vale a pena, que ninguém quer
saber porque toda a gente sabe, os palermas insistem porque podem e têm um
blogue.
É dessa teimosia que mistura terapia com dumping que
nasceram estas crónicas lacónicas. Pequenos instantâneos que não pretendem mais
nada do que descrevê-los, sem mensagem ou moral adjacente. Está bem, pronto: é mentira.
A mera escolha das situações que servem de motivo a uma crónica implica sempre uma visão do mundo que se pretende
partilhar. No limite, seja através dos recursos que convoca – o humor, a
indignação, a análise rigorosa, a auto-depreciação, a doutrina ideológica e
mais – o cronista só quer uma coisa: ter razão, nem que seja apenas no momento
em que o leiam. Todas as reacções que provocar, boas ou más, são sinais de que
a coisa correu bem. O pior para quem escreve – e digo eu, para quem vive – é inspirar
a indiferença. Um flagelo tão próximo e comum que atinge tão depressa os que
mostram uma indignação previsível como os que tentam desesperadamente
transmitir um tédio artificial sobre tudo o que mexe, uma espécie de colchão
patético para atenuar a realidade. Mas chega de falar de mim.
Despachado o editorial, ao que interessa e que será o
formato futuro. O facto de Lisboa ser, ao que parece, uma cidade na moda em
2014 não só é merecido como tardio. Mas o verdadeiro lisboeta – ou o verdadeiro
parisiense ou o [colocar a cidade ou lugar apetecido] tem naturalmente uma
relação amor-ódio com os excelsos visitantes, porque a tem com a própria cidade
pelo simples facto de a amar. Por um estranho e maravilhoso paradoxo, quanto
mais amamos e vangloriamos o sítio onde vivemos mais desejamos que fosse um
segredo. Uma coisa só nossa, para maçar os amigos estrangeiros que nos ouvem em
reverência mas em que nós guardamos a
secreta esperança de que não divulguem a coisa. Sim, como esse restaurante
fabuloso no meio de nenhures ou a praia deserta a que só se tem acesso mediante
um curso de pára-quedismo.
Este ano trouxe a verdade: acabou. A cidade apareceu em
todas as revistas trendy; da mítica luz à tasca onde se confecciona o
melhor cozido à portuguesa a sensação do lisboeta é o mesmo híbrido: ‘claro que
isto é fabuloso mas quando é que se vão embora?’
Naturalmente tudo isto é irracional e injusto: todos os que
aqui vivem e elogiam a cidade são de repente os primeiros a não lidarem bem com
o que proclamaram. Tentamos apegarmo-nos ao que sabemos e vangloriamos; mas
depois passamos pelo engarrafamento de funâmbulos com canídeos no Chiado e
repensamos a coisa.
Há várias maneiras do lisboeta lidar com isto. A mais fácil e certa é a do reconhecimento:
Lisboa, com as suas mil aldeias miraculosamente unidas, começa a ser um
privilégio que a pouco e pouco é descoberto. Há que estar grato. Mas em rigor a
cidade ainda não está preparada para o que lhe aconteceu.
Essa é matéria de outras – tantas - conversas. Para mim, o que conta é o outro olhar, aquilo que
incomoda ou revela. Há uns dias, um rapaz inglês a viver e trabalhar na capital , perguntou-me com genuína perplexidade:« O que é que acontece às quintas-
feiras, que há sempre protestos?» O jovem vive na zona de São Bento e detectou
um padrão que eu não pude explicar. Respondi com amenidades, com a conjuntura,
sei lá. «Mas as quintas, porquê?»
É este olhar que precisamos, povo que somos e que não pratica a
auto-ironia. E foi este olhar que me provocou a mais triste resposta, nacional
e não local: «Os dias, não faço ideia. Mas para bem e para o mal, há algo que podes contar com os tugas: temos
indignação às quintas mas o Facebook nunca fecha».