terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Crónica Lacónica

O ano de Lisboa

Um tipo às vezes perde-se. E então se tem como profilático involuntário o ordenar palavras, pior ainda. Mais fácil para quem se liberta ou está habituado ao peso dos dias, por vontade, profissão ou ambos. Mas para os amadores, os cronistas diletantes – leia-se “os que não são pagos” – o dilema agiganta-se: tanta coisa que acontece ( que os não-especialistas despacham com a palavra ‘ vida’) e apesar de sabermos que não vale a pena, que ninguém quer saber porque toda a gente sabe, os palermas insistem porque podem e têm um blogue.
É dessa teimosia que mistura terapia com dumping que nasceram estas crónicas lacónicas. Pequenos instantâneos que não pretendem mais nada do que descrevê-los, sem mensagem ou moral adjacente. Está bem, pronto: é mentira. A mera escolha das situações que servem de motivo a uma crónica implica  sempre uma visão do mundo que se pretende partilhar. No limite, seja através dos recursos que convoca – o humor, a indignação, a análise rigorosa, a auto-depreciação, a doutrina ideológica e mais – o cronista só quer uma coisa: ter razão, nem que seja apenas no momento em que o leiam. Todas as reacções que provocar, boas ou más, são sinais de que a coisa correu bem. O pior para quem escreve – e digo eu, para quem vive – é inspirar a indiferença. Um flagelo tão próximo e comum que atinge tão depressa os que mostram uma indignação previsível como os que tentam desesperadamente transmitir um tédio artificial sobre tudo o que mexe, uma espécie de colchão patético para atenuar a realidade. Mas chega de falar de mim.
Despachado o editorial, ao que interessa e que será o formato futuro. O facto de Lisboa ser, ao que parece, uma cidade na moda em 2014 não só é merecido como tardio. Mas o verdadeiro lisboeta – ou o verdadeiro parisiense ou o [colocar a cidade ou lugar apetecido] tem naturalmente uma relação amor-ódio com os excelsos visitantes, porque a tem com a própria cidade pelo simples facto de a amar. Por um estranho e maravilhoso paradoxo, quanto mais amamos e vangloriamos o sítio onde vivemos mais desejamos que fosse um segredo. Uma coisa só nossa, para maçar os amigos estrangeiros que nos ouvem em reverência mas  em que nós guardamos a secreta esperança de que não divulguem a coisa. Sim, como esse restaurante fabuloso no meio de nenhures ou a praia deserta a que só se tem acesso mediante um curso de pára-quedismo.
Este ano trouxe a verdade: acabou. A cidade apareceu em todas as revistas trendy; da mítica luz à tasca onde se confecciona o melhor cozido à portuguesa a sensação do lisboeta é o mesmo híbrido: ‘claro que isto é fabuloso mas quando é que se vão embora?’
Naturalmente tudo isto é irracional e injusto: todos os que aqui vivem e elogiam a cidade são de repente os primeiros a não lidarem bem com o que proclamaram. Tentamos apegarmo-nos ao que sabemos e vangloriamos; mas depois passamos pelo engarrafamento de funâmbulos com canídeos no Chiado e repensamos a coisa.
Há várias maneiras do lisboeta lidar com isto. A  mais fácil e certa é a do reconhecimento: Lisboa, com as suas mil aldeias miraculosamente unidas, começa a ser um privilégio que a pouco e pouco é descoberto. Há que estar grato. Mas em rigor a cidade ainda não está preparada para o que lhe aconteceu.
Essa é matéria de outras – tantas  - conversas. Para mim, o que conta é o outro olhar, aquilo que incomoda ou revela. Há uns dias, um rapaz inglês a viver  e trabalhar na capital , perguntou-me com genuína perplexidade:« O que é que acontece às quintas- feiras, que há sempre protestos?» O jovem vive na zona de São Bento e detectou um padrão que eu não pude explicar. Respondi com amenidades, com a conjuntura, sei lá. «Mas as quintas, porquê?»
É este olhar que precisamos, povo que somos e que não pratica a auto-ironia. E foi este olhar que me provocou a mais triste resposta, nacional e não local: «Os dias, não faço ideia. Mas para  bem e para o mal, há algo que podes contar com os tugas: temos indignação às quintas mas o Facebook nunca fecha».